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Diário da Amazônia

Lugar de mulher…

“Lugar de mulher é realmente onde ela quiser. Mas ainda vai demorar muito para esta deixar de ser apenas uma “frase de efeito”.

Por Maria Angela de Lima Dummel
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Publicado: 07/03/2017 às 06h30min

Ainda que antes das guerras mundiais algumas mulheres já exercessem funções tidas como “femininas” em fábricas, foi preciso duas guerras para que a mulher efetivamente assumisse, além da casa e filhos, o espaço deixado pelos homens nos negócios da família e no mercado de trabalho, enquanto eles estavam nas frentes de batalha. E mesmo que após as referidas guerras elas tenham sido proibidas novamente de exercer algumas das funções consideradas “masculinas”, de lá para cá, não sem muitas batalhas, a participação feminina no mercado de trabalho ganhou mais força. Principalmente nos anos 70 e 80. Apesar disso, o relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) “Mulheres no Trabalho: Tendências de 2016” revelou a persistência da desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho mundial: “ao longo das duas últimas décadas, progressos significativos realizados pelas mulheres na educação não se traduziram em melhorias comparáveis nas suas posições de trabalho”.

Por ironia, em contraponto à famosa frase “lugar de mulher é na cozinha”, pinço, a título de exemplo, o segmento da culinária. Se há um espaço que sempre representou “o lugar da mulher” no senso comum, este foi a cozinha. Mas, em casa. Porque para o trabalho profissional, com remuneração, historicamente o domínio sempre foi masculino. Ao longo dos séculos, as diferenças sociais nas categorias “mulher na cozinha” e “homem na cozinha” tornaram-se marcantes. A historiadora Rafaella Sarti, citada por Aguiar (2016) explica que, na Idade Moderna, com exceção da Inglaterra e Alemanha, “enquanto as mulheres de classes mais baixas eram responsáveis pelo preparo do alimento, as classes mais altas designavam homens para a tarefa de cozinheiro”. Aguiar apresenta ainda estudos feitos pelo pesquisador Carlos Alberto Dória, doutor em sociologia, que aponta que a culinária masculina está associada, no imaginário popular, à arte. Enquanto a culinária feminina está associada à expressão “cozinhar com amor”, sendo considerada mais simples e afetiva.

O programa Mais Você, da Rede Globo trouxe, no último dia 02 de março, um exemplo da representatividade feminina na alta gastronomia: entrevista com a chef alagoana Giovanna Grossi, de 25 anos, que participou da final do concurso Bocuse d’Or de 2017, maior concurso de gastronomia do mundo realizado em Lyon, na França, tendo a participação de 24 países. Grossi entrou para a história do Bocuse d’Or como a primeira mulher brasileira e segunda mulher do mundo a participar desse evento, que é realizado há 30 anos e tradicionalmente dominado pelos homens. Ela venceu a primeira etapa no Brasil (oito concorrentes, apenas uma mulher), a segunda etapa no México (quando quatro países foram selecionados, ficando o Brasil, representado por Giovanna, em primeiro lugar), e na final, em Lyon, o time Brasil ficou em 15º lugar.

Poderia ser apenas mais uma história de superação, de dedicação e profissionalismo, mas ao conceder a entrevista, Giovanna evidencia o quanto o mercado de trabalho, neste e em outros segmentos, pode ser cruel na desigualdade de gêneros. Sobre o fato das mulheres não participarem muito desse tipo de evento, a apresentadora Ana Maria questiona se é por medo. E Giovanna responde claramente: é preconceito. Na chamada “alta cozinha”, Giovanna explica: “dizem que a mulher não é capaz, que tem que carregar peso, ficar muitas horas em pé” e desabafa: “tem que ser muito duro para conseguir (ir ao evento)”. No recente programa ‘Master Chef Profissionais’, da emissora Band, esse preconceito com a mulher atuando como chef ficou evidente quando, em um dos episódios (15/11/2016), o participante Ivo sugeriu à concorrente Deyse (vencedora do reality) que pegasse uma vassoura para varrer o chão quando a mesma se queixou por não ter recebido nenhuma atividade na cozinha.

Infelizmente, durante todo o programa, este não foi um fato isolado.

De volta à entrevista de Giovanna, destaca-se a necessidade da “dureza” da mulher explicitada em sua fala. Em outro trecho ela sugere como deve ser o comportamento naquele ambiente de trabalho: “como é mulher, eles já te olham de maneira diferente. Então você tem que mostrar ser um pouco mais séria que o normal para ser respeitada”. Assim surge o conceito da “dama de ferro” para ganhar aceitação organizacional (Bruschini e Puppin, 2004).

A situação na culinária também não está isolada de outros segmentos profissionais, pois ser mulher no mercado de trabalho nunca foi fácil. O Brasil, segundo o Fórum Econômico Mundial (2014), é o penúltimo país das Américas no ranking de igualdade salarial entre homens e mulheres, ficando em 124º lugar, entre 142 países. Se o objetivo da mulher é ocupar os níveis mais altos nas empresas, prepare-se para mais dureza: segundo pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Instituto Ethos, divulgada em maio de 2016, as mulheres ocupam apenas 13,6% dos cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras. Para as mulheres negras, a situação é ainda mais desfavorável: das 500 empresas pesquisadas, apenas 10,3% ocupam o nível funcional, 8,2% fazem parte da supervisão e 1,6% da gerência. No quadro executivo, a presença da mulher negra se reduz a 0,4% (mais precisamente, duas mulheres nas empresas pesquisadas). E se você é mulher, jovem, e tem esperança de que a situação mude com o tempo, o Fórum Econômico Mundial responde: se o ritmo continuar o mesmo, “a igualdade de gêneros só será possível em 2095”. Você não estará mais tão jovem, resta torcer para estar viva para ver isso.

Sim, lugar de mulher é realmente onde ela quiser. Mas ainda vai demorar muito para esta deixar de ser apenas uma “frase de efeito” e realmente surtir efeito no mercado de trabalho. Como visto, esta “guerra” contra a desigualdade de gêneros está longe de acabar, entretanto, as batalhas diárias devem continuar.



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