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VARIEDADES

A chocante história das mulheres esterilizadas contra a vontade

Na década de 1970, o governo dos EUA implementou programas de planejamento familiar para as comunidades indígenas americanas; Jean..

Por BBC News Brasil
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Publicado: 29/01/2019 às 16h49min

Na década de 1970, o governo dos EUA implementou programas de planejamento familiar para as comunidades indígenas americanas; Jean Whitehorse foi uma das mulheres submetidas a procedimento de esterilização sem saber e hoje conta a sua história.

Quando minha filha tinha 12 anos, sempre me perguntava por que não tinha irmãos e irmãs. Quando ela estava com 33 anos, contei o que haviam feito comigo”, diz Jean Whitehorse. “Foi doloroso para ela saber o que aconteceu com a mãe”.

Jean Whitehorse diz que contar sua história “aliviou sua raiva” Foto: Lorna Tucker’ / BBC News Brasil

Jean fazia parte da Nação Navajo – um território nativo americano que ocupa partes do Arizona, Utah e Novo México nos Estados Unidos. As pessoas que vivem nessa área são da tribo Navajo – uma das maiores tribos nativas americanas no país.

Ela foi uma das vítimas de um programa de planejamento familiar patrocinado pelo Estado que submeteu milhares de mulheres a esterelizações forçadas. Como ela, pelo menos 3,4 mil indígenas – de culturas onde a riqueza é medida pela quantidade de filhos e não por bens materiais – foram esterelizadas contra a vontade somente nos anos 70, ou seja, foram deliberadamente submetidas a técnicas para evitar a gravidez, como forma de controle da população.

Jean só soube que era uma delas quando não conseguiu engravidar do segundo filho.

Grupo de mulheres indígenas navajo assa pão usando um forno de barro: Cultura mede riqueza por quantidade de filhos e não por bens
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Na época, ao procurar um hospital, foi informada de que havia sido esterelizada, e que isso havia acontecido – sem ela saber – anos antes, no mesmo dia em que havia passado por uma cirurgia para retirar o apêndice.

“Eles tiraram de mim todos os filhos que eu poderia ter gerado. Quando vejo famílias jovens com crianças sempre acho que eu poderia tê-los tido”, diz. Em entrevista ao programa Outlook, da BBC, ela compartilhou sua dor, vergonha e raiva.

Leia a história dela a seguir:

Em 1969, Jean estava morando na cidade de Oakland, na Califórnia, quando engravidou da filha.

Ela foi ao hospital fazer exames e foi questionada se tinha seguro de saúde. Quando disse que não, eles pediram que ela assinasse uma série de documentos. “Eles disseram, se você assinar esses papeis, suas despesas médicas serão resolvidas. Perguntei a eles o que eles queriam dizer com aquilo e eles disseram: ‘sua filha será colocada para adoção e as pessoas que a adotarem pagarão por sua adoção médica’. Eu disse que não e fui embora”, lembra ela.

“Ela é meu bebê. Eu não quero dar a ela a ninguém”, acrescentou.

Sem consentimento

Jean voltou para sua comunidade Navajo no Novo México para ter a filha.

Meses após o parto, sentiu fortes dores de estômago e se dirigiu a uma clínica local administrada pelo Serviço Indiano de Saúde.

Durante anos, Jean Whitehorse lutou com a dor de ter sido submetida ao procedimento
Foto: Lorna Tucker / BBC News Brasil

“Eles disseram que meu apêndice estava infeccionado e me levaram de ambulância para um outro hospital”. Também pediram que ela assinasse vários papeis que achava serem de praxe antes de qualquer cirurgia.

“Eu estava com muita dor. Eles disseram que, a menos que eu assinasse, nada poderia ser feito. Eu assinei um papel atrás do outro sem lê-los.”

O apêndice dela foi retirado, mas esse não foi o único procedimento realizado naquele dia.

Alguns anos depois, enfrentando problemas para engravidar, ela voltou ao hospital e foi informada de que, segundo seus registros médicos, havia sido esterilizada. “Eles disseram que eu nunca mais teria filhos.”

Política de Estado

A esterilização de Jean ocorreu no momento em que o governo dos Estados Unidos começou a implementar programas de planejamento familiar para as comunidades indígenas americanas.

Homem e mulher Navajo em uma carruagem, 1939: Programa de controle de natalidade do governo, anos depois, fez milhares de vítimas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Jean não foi a única mulher submetida à cirurgia de esterelização sem saber com o que exatamente estava concordando. Muitas mulheres indígenas americanas teriam passado pelo mesmo.

Um relatório publicado pelo US Government Accountability Office, órgão responsável por examinar como o dinheiro dos contribuintes é gasto e dotar o Congresso e agências federais americanas de informações para ajudar o governo a economizar e e a trabalhar de forma mais eficiente, analisou a questão das esterilizações.

O órgão investigou quatro das 12 regiões onde as esterilizações ocorreram entre 1973 e 1976, e concluiu que 3.406 dessas esterilizações não foram voluntárias ou por indicação médica.

Em resumo, nem sempre houve o consentimento informado das mulheres.

Cerimônia da Dança do Sol

Desde que o relatório foi publicado, o Serviço de Saúde da Índia diz que salvaguardas adicionais foram postas em prática. Sua atual política diz que o serviço não vai estimular nem desencorajar a esterilização ou a fertilidade da população a que serve.

O censo de 2010 dos EUA estima a população de índios americanos e nativos do Alasca em 2,9 milhões
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Jean diz, no entanto, que muito pouco foi feito em apoio às mulheres esterilizadas contra a própria vontade.

Ela afirma ter lutado sozinha por anos, que se entregou à bebida por causa disso e chegou, inclusive, a maltratar a própria a filha.

Sua situação só melhorou quando um amigo a convidou para uma “Dança do Sol” – uma cerimônia nativa americana focada na cura. Isso, para ela, representou uma grande ajuda.

Contando a história

Anos depois, a documentarista britânica Lorna Tucker contatou Jean e a convenceu a compartilhar sua história, que apareceu com destaque no documentário Amá. A palavra significa “mãe” na língua navajo.

Jean diz que “as mulheres jovens devem saber que isso (as esterelizações forçadas) é parte da história” do povo
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

“Eu estava com raiva e pensando que era a única (a ter passado por aquilo). Mas depois que compartilhei a história me acalmei mais”, diz ela. “Estou feliz por ter contado minha história. As mulheres jovens devem saber que isso é parte da nossa história”.

Vulnerabilidade

Historicamente, o povo nativo americano sofreu muita discriminação – e as conseqüências ainda são sentidas.

De acordo com um relatório da ONU de 2010, um nativo americano tem 600 vezes mais chances de contrair tuberculose e 62% mais chances de cometer suicídio do que a população em geral.

As comunidades nativas americanas teriam sido deixadas de fora do sonho americano
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No Canadá e no Peru elas se davam contra os povos indígenas, na Índia e na China como parte do controle populacional, na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial sob o Terceiro Reich, em Israel contra os judeus etíopes, na Rússia contra pessoas com deficiências e na África do Sul contra mulheres soropositivas.

Apesar de suas terríveis experiências, Jean, que agora é bisavó, diz que é confiante sobre o futuro de sua comunidade.

“As coisas estão mudando. Eles agora não passam pelo que passamos.”



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