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Aves de sepulcros

Quando os pássaros descem das copas das árvores para beliscar as sementes que se espalham pelo pequeno campo, onde o cemitério da vila..

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Publicado: 20/07/2014 às 18h22min | Atualizado 30/03/2015 às 03h35min

Quando os pássaros descem das copas das árvores para beliscar as sementes que se espalham pelo pequeno campo, onde o cemitério da vila está a céu aberto, eles ficam disparando pequenos batimentos de asas que, somados ao cantarolar de centenas destes, ecoa até as casas dos moradores como uma linda canção orquestral. A sinfônica deste empreendimento natural transmuta a realidade sôfrega do lugar na mais aconchegante e enebriante primavera. Em pleno verão, seco e escaldante, tudo aquilo vivifica no complexo jardim de flores. Tem sido assim o prado dos mortos, coberto por uma grama fina e seus talos esticados. Uma espécie de capim, típico dos campos, que fornece o ambiente oportuno para nascimento de plantas florais. A boa terra, contam as pessoas comuns da vila, foi fertilizada pela humificação dos corpos do passado que ali ficaram enterrados. Embaixo, no subsolo, a nata fria que condimenta o plano menos aparente da realidade. Sobre este, na superfície, o mapa das confluências entre todos os paralelos. Entre o calor da vida, com suas flores e espinhos, e a coisificação da subjetividade. O cemitério, de fato, tem sido essa frequência que faz canalizar todas as forças pulsantes em junção aleatória para o único ponto, o qual, denominamos presente. No cemitério também está adormecido o substrato mais sólido da membrana que envolve o olhar do passado. Da mesma forma, também o futuro está embutido neste lugar.

Quando os pássaros deixam de descer para apanhar as sementes nos cachos esticados de capins, o tempo já se aproxima do meio dia. Mas, nem todos se afastam dali. De uma distância razoável, com cerca de vinte metros, é possível enxergar sobre as pontas das cruzes algumas aves mais robustas que se destacam pela curvatura de seus bicos. Também suas pontas de asas são mais alongadas que as demais. Elas são enxotadas, quando vistas, pelos moradores da vila que as têm como pássaros que atraem má sorte, aves de agouro. E, esses bichos agourentos são expulsos mas, logo retornam. Dão meia volta e já estão por lá novamente. As contadoras de histórias, mulheres mais idosas da localidade, espalham pelo lugarejo que não se pode tocar essas criaturas, muito menos matá-las. Isso traria pior desgraça ainda. Assim, elas vão contagiando todo o clima do dia que, após suas chegadas, desbota a cor e ganha um ar tétrico. Ao passo em que a tarde avança, a beleza da manhã vai ficando encoberta pela penumbra que se torna ainda mais acirrada à noite. Ali, a tenebrosa presença da ausência de luz se instala de vez. E até mesmo quando a lua desponta no céu, não abre, com seu clarão, condição para o aniquilamento da tonalidade triste do cemitério da vila.
Quando os pássaros sepulcrais levantam suas asas, desenvolvendo pequenos voos de uma ponta de cruz para outra, é porque o mundo dos mortos, soterrado no centro daquela picada da floresta, pulsa com suas mensagens enigmáticas. Em certos momentos, contam alguns moradores, é bem possível perceber como a folhagem seca se move, como se alguém caminhasse sobre elas. Até mesmo quando não há qualquer sinal de ventania, muitas vezes os amontoados de folhas secas explodem, subindo pelos ares. Nesses momentos, as aves sinistras causam grande reboliço, e gralham uns sons estranhos que assustam os moradores da vila.

A mulher abriu sua janela, assustada com o corvejar que explodia no cemitério, e colocou apenas meia cabeça de fora, a ponto que pudesse permitir ângulo para seu olhos. Mas, lá, bem longe, numa distância de pouco mais de vinte metros, nada se movia. Nem mesmo pássaros existiam. Então, ela voltou para dormir e cientificou-se de que tivera mais um daqueles pesadelos indigestos. Como costumam sonhar os demais moradores quando as noites estão muito escuras. Quando o verão avança com esse gosto abrasivo.



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