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Dentro do Deic, o investigador matou a tiros o irmão delegado

O processo penal é um banco de prova da civilização, ensinou Francesco Carnelutti, o penalista italiano. “O delito, com tintas mais ou..

Publicado: 30/09/2020 às 12h46

Sede do Deic, em São Paulo
Divulgação/SSP

O processo penal é um banco de prova da civilização, ensinou Francesco Carnelutti, o penalista italiano. “O delito, com tintas mais ou menos fortes, é o drama da inimizade e da discórdia”. Não se pode julgar por intenção senão através da ação.

As definições de Carnelutti são perfeitas, e ao mesmo tempo pouco conhecidas, porque num processo criminal importa apenas discutir provas de autoria, para absolver ou condenar. A alma humana fica trancada num bloqueio glacial.

A respeito, teses, teorias, muitas construídas no vácuo, surge o inesperado, emerge o estarrecimento, brotam a decepção e o impacto, principalmente quando os detalhes de uma história são particularmente chocantes. Por exemplo: irmão ser capaz de matar o irmão. Não é inimaginável. Mas aconteceu e acontece. O primeiro homicídio na face da terra. A síndrome de Caim, as tragédias contemporâneas.

Aconteceu num lugar que teve como palco justamente o ambiente da investigação criminal, o prédio onde está instalado o Departamento Estadual de Investigações Criminais, o Deic, na zona norte de São Paulo. É uma espécie de central de combate ao crime organizado, que envolve crimes contra o patrimônio em geral, o que inclui bancos, automóveis e cargas. Em tese, ali se reúne uma elite investigativa, apurando atividades de pessoas e bandos que desafiam as forças policiais.

Neste Deic, um investigador de polícia entrou na sala de um delegado, discutiu com ele e deu-lhe dois tiros certeiros – um na cabeça, outro no peito. Disparos próximos, distância curta. Gatilho acionado por quem sabe profissionalmente fazer disparos sem a menor possibilidade de erro. A arma como instrumento de trabalho.

Neste caso, o atirador foi um investigador e o alvejado um delegado de polícia. O detalhe, misterioso e assustador de início: ambos eram irmãos sanguíneos.

Vítima e assassino

A vítima foi surpreendida. O assassino foi milimetricamente calculista. Sérgio Ricardo Guarda, o delegado, era delegado titular da 2ª delegacia da Divecar, a Divisão do Deic que investiga casos de roubos e furtos de veículos, e também de cargas transportadas. William Ricardo Guarda, o investigador, trabalhava na DGP, A Delegacia Geral de Polícia, aquela que comanda toda a instituição policial civil.

É normal que dois irmãos conversem ou tenham desavenças, sejam amigos ou se deixem dominar pelos atritos. O delegado Sérgio tinha know-how na Polícia. Passou pelo DHPP, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa; o GOE, Grupo de Operações Especiais, e efetuou a prisão de um perigoso facínora, conhecido como “Batoré”, autor de quinze assassinatos. Sérgio era casado com uma delegada e não tinha filhos. O irmão teve uma vida policial mais discreta, sem maiores referências.

Era mês de dezembro. Faltavam dezenove dias para o Natal. Nessa época do ano, as árvores natalinas estão por toda parte, com suas bolinhas de enfeite, e há um clima de fraternidade no ar. Na sala do delegado, não era diferente: num canto, estava a arvorezinha de enfeite, luzes que se acendem e apagam, tudo a lembrar a grande data que divide a história da humanidade em antes e depois.

Ricardo chegou cedo ao Deic. Procurou pelo irmão, que não estava às 11 horas da manhã. Longa espera. Sérgio só voltaria às 4 da tarde. Ricardo esperou pacientemente por cinco horas, entrou e fechou a porta. Sérgio ficou sentado atrás da sua mesa.

Não se pode saber sabe com exatidão o que se conversou lá dentro da sala, só tem um para contar, mas sabe-se que houve uma áspera discussão: pelo lado de fora, policiais ouviram gritos, vozes altas. Um delegado jamais permitiria hierarquicamente um atrevimento daqueles. Mas era o irmão…

Sérgio morreu na hora. Ricardo tentou fugir, deu mais tiros querendo escapar, feriu um policial do Deic e foi preso em flagrante, autuado na Corregedoria da Polícia Civil. Godofredo Bittencourt, então diretor do Deic, acostumado a assistir todo tipo de desgraça, ficou surpreso com a perda de um de seus melhores policiais, corpo velado na Academia da Polícia.

Anos antes, no mesmo Deic, um delegado, Jair Cesário da Silva, engasgou-se comendo uma maçã, passou mal e morreu a caminho do pronto-socorro de Santana. Inacreditável. Coisas diferentes. Mais de quinhentos policiais foram ao sepultamento de Sérgio.

Por que matar?

A incômoda pergunta teve que ser feita incontáveis vezes. William estava descontrolado, a princípio, transpirando ódio, mas pouco a pouco foi se acalmando o suficiente para contar uma história, aparentemente verdadeira, mas inverossímil, na tentativa de justificar o que é injustificável.

A motivação foi dinheiro, o vil metal, a causa de tantos males, sempre o pano de fundo de motivação para vários crimes de morte. Mais precisamente, um inconformismo de William por causa de uma herança, que contemplava Sérgio com um apartamento. Ora, é natural que o delegado tenha um salário maior do que o irmão, investigador. Só que William acreditava que, justamente por ter um salário menor, deveria ser aquinhoado com uma parte maior da herança.

Mas quem decide a partilha? O delegado? Não. Por óbvio, William deveria saber disso, mas com critérios particulares sobre justo ou injusto, achou que o irmão deveria abrir mão de sua parte para beneficiá-lo, como um mais necessitado. Exagerou tanto na dose desse pressuposto que chegou a fazer ameaças ao irmão, que para evitar maiores problemas, registrou os fatos na Corregedoria da Polícia, o que deixou William mais furioso ainda.

Palavras, tiros

A inimizade e a discórdia fazem parte dos motivos que levam alguém a matar. No primeiro homicídio sobre a face da terra, narra o livro de Gênesis que ciúmes de Abel levaram o assassino a ficar com o rosto transfigurado, a ponto de Deus lhe dizer (4:7) que “o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo”.

William estava transfigurado, dominado pelo ódio acumulado. Ninguém se torna violento de repente, da noite para o dia. Antes, é preciso aprender a odiar. William tinha ciúmes do irmão. Na Polícia, Sérgio tinha, claro, importância infinitamente maior. Em casa, o pai achou que a distribuição dos bens por herança estava justa, mas William preferiu culpá-lo por algo que não havia sido pensado.

A portas trancadas, William destilou ódio. Sérgio apenas ouviu. A rigor, estava acostumado com esses repentes, mas em momento algum caberia a ele o papel de interpretar os critérios adotados para elaboração do testamento familiar. William achava que tinha direitos sobre o que não tinha. Imaginários. Esbravejou e quis tirar satisfações sobre o fato de o delegado ter procurado a polícia da polícia, a Corregedoria, para narrar, preservando direitos, aqueles fatos desagradáveis. William, já furioso, considerou isso inadmissível.

Palavras exclamadas com fúria são cortantes, ferinas, e tornam-se muito perigosas quando mal utilizadas. Segundo escritor inglês Graham Greene, se assim for, podem explodir na boca. No caso de William, as palavras, aparentemente ensaiadas, precederam aos disparos. Sérgio ficou surpreendido, como se tivesse caído numa emboscada, tombando sem vida no próprio local de trabalho. Não pelas mãos de um bandido, como seria de esperar que pudesse acontecer com um policial, mas pelo irmão empunhando com fúria a arma que a própria Polícia lhe cedeu.

O Caim contemporâneo tentou escapar. Policial querendo fugir de policiais. Algemas, flagrante. Carnelutti tinha razão: o processo penal é uma escola de incivilização.

Na lavratura do flagrante, William se comportava como vítima e tratava Sérgio, morto, como algoz. Para os encarregados do flagrante, já constrangedor quando se trata de colega para colega, também foi deprimente: a mulher do assassino bradava que aquilo já deveria ter acontecido há muito tempo, como se assassinato precisasse de avalista e fosse tarde demais para esquecer as brumas do passado.

No Deic, o mais pesado dos silêncios, perplexidade na busca da resposta para compreender. Na Polícia, vê-se de tudo que desfila na criminosa passarela humana. Quando você pensa que já viu de tudo, acontece uma surpresa. Relativamente, porque um sábio e vigoroso provérbio forense afirma que somente se conhece verdadeiramente uma família após o primeiro inventário. Quantas vezes você soube que é exatamente assim?

(R7)

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