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Diário da Amazônia

O princípio da dignidade da pessoa humana e suas irradiações restritivas

A relevância histórico-constitucional da prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana e suas irradiações restritivas na..

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Publicado: 30/07/2020 às 11h32min | Atualizado 30/07/2020 às 18h25min

A relevância histórico-constitucional da prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana e suas irradiações restritivas na competência do Estado no que se refere à edição de normas que pretendem abolir ou tendam a abolir o núcleo essencial dessa garantia fundamental.

Jefferson Rian Ferreira da Silva

No Brasil, o Movimento da Lei e da Ordem considera o crime uma patologia a ser tratada e o criminoso um paciente incurável. 

O aumento do crime organizado e dos crimes violentos levou o Legislador a encrudelecer a legislação penal.

Nessa perspectiva, foi editada a Lei n. 12.234/2010, de 05 de maio de 2010, que alterou os artigos de n.º 109 e 110 do Código Penal. 

Traz-se à baila a redação dessa lei:

LEI Nº 12.234, DE 5 DE MAIO DE 2010.

Altera os arts. 109 e 110 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º  Esta Lei altera os arts. 109 e 110 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para excluir a prescrição retroativa.

Art. 2º  Os arts. 109 e 110 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passam a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 109  A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:

VI – em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.

 Art. 110

§ 1º  A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa.

§ 2 º  (Revogado).

Art. 3º  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º  Revoga-se o § 2º do art. 110 do Código Penal.

Brasília, 5 de maio  de 2010; 

189º da Independência e 122º da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto

De ver que a mens legis visa aumentar as punições para os crimes perpetrados, com o endurecimento da lei penal.

Com essa lei, o Código Penal aboliu, praticamente, a prescrição retroativa para os crimes praticados a partir de 5 de maio de 2010.

Infere-se que essa alteração da contagem do prazo prescricional está eivada de vício de inconstitucionalidade por violação do princípio da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica.

O CONCEITO DE PRESCRIÇÃO 

O verbo prescrever, no sentido comum, pode ter o significado de preceituar, fixar, limitar e determinar. Já no sentido jurídico, quer dizer ficar sem efeito um direito por ter decorrido certo prazo legal. 

Adotando-se o sentido jurídico, mais especificamente no campo penal, o transcurso do tempo pode ser entendido como a conveniência política de não ser mantida a persecução criminal contra o autor de uma infração ou de não ser executada a sanção em face de lapso temporal minuciosamente determinado pela norma. 

Em essência, o verbete prescrição vai de encontro à idéia de se eternizar algo ou alguma coisa, ou seja, tem-se como noção básica a de limitar a resposta (direito) do Estado para aquele indivíduo que comete um delito. 

Por outro lado, a imprescritibilidade é maneada pela noção de indefinitividade, ou melhor, a imprescritibilidade vai ao encontro da noção de eternidade. Exemplificando: retrata-se na história mitológica da Grécia que existiu um herói chamado Prometeu, este foi quem roubou dos deuses o conhecimento para uso do fogo e o deu de presente para os homens. Contudo, Zeus ficou transtornado com o acontecimento e como medida retributiva acorrentou Prometeu nas montanhas dos Cáucasos, onde todas as noites uma Águia vinha e se alimentava do seu fígado, que era regenerado durante a madrugada para servir de alimento para a grande Águia no dia seguinte. 

Logo, a substância do instituto da prescrição é de limitar a possibilidade de tornar eternamente possível a persecução penal ou uma possível sanção penal, não deixando o indivíduo em uma situação de constante insegurança perante o Estado sancionador.

o HISTÓRICO DA PRESCRIÇÃO NO DIREITO PENAL

O primeiro registro de hipótese de prescrição foi em 17 a.C, quando o imperador Augusto, por meio de lex Iulia de adulteriis coercendis, procurou punir o adultério, estupro e lenocínio. O prazo para a apresentação de queixa era de 5 (cinco) anos. Após esse período, o autor do fato não poderia mais sofrer nenhuma perseguição.

No Século XVIII, o instituto da prescrição da pena foi positivado no Código Francês de 1791, principalmente em virtude da Revolução Francesa.

No Brasil Colônia, lastreado nas Ordenações Portuguesas, todos os crimes eram imprescritíveis.

O Código Criminal do Império (1830) não admitia a prescrição de nenhum crime. O Código de Processo Criminal do Império de 1832 passou adotar a prescrição quanto à ação. Apenas em 1841 os crimes afiançáveis passaram a admitir a prescrição em 20 (vinte) anos.

O Decreto n. 774, de 1890, passou a admitir a prescrição da condenação. A partir dessa norma, a prescrição da ação e da condenação em um prazo máximo de 20 (vinte) anos.

O atual Código Penal prevê a prescrição como hipótese de extinção da punibilidade. Está prevista na Parte Geral, Título VIII, artigos 109/118.

PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA E DA EXECUTÓRIA

Ocorrido o crime, nasce para o Estado a pretensão de punir o autor do fato criminoso. Essa pretensão deve, no entanto, ser exercida dentro de determinado lapso temporal que varia de acordo com a figura criminosa composta pelo legislador e segundo o critério do máximo cominado em abstrato da pena privativa de liberdade. Escoado esse prazo, que é submetido a interrupções ou suspensões, ocorre a prescrição da pretensão punitiva, chamada impropriamente de prescrição da ação penal. Nessa hipótese, que ocorre sempre antes de transitar em julgado a sentença condenatória, são totalmente apagados todos os seus efeitos, tal como se jamais tivesse sido praticado o crime ou tivesse existido sentença.

Transitado em julgado a sentença condenatória para ambas as partes, o título penal surge para ser executado dentro de certo lapso de tempo variável de acordo com a pena concretamente aplicada. Tal título perde sua força executória se não for exercitado pelos órgãos estatais o direito dele decorrente, verificando-se então a prescrição da pretensão executória, também denominada prescrição da pena, da condenação, ou da execução da pena. Nessa hipótese, extinguem-se somente as penas. As medidas de segurança, nos termos da lei nova, somente são extintas quando decorrido o prazo da prescrição da pretensão punitiva ou em decorrência de outra causa extintiva da punibilidade (art. 96, parágrafo único). Os demais efeitos da condenação (pressuposto da reincidência, inscrição do nome do réu no rol dos culpados, pagamento de custas, efeitos da condenação etc.) permanecem enquanto não ocorrer causa que os extinga (decurso de cinco anos para a reincidência, reabilitação etc.).

REDAÇÃO DADA PELA LEI N.° 12.234, de 2010.

Dispõe o art. 109, caput: 

A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto nos § 1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: (redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).

I – em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;

II – em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze;

III – em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito;

IV – em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;

V – em quatro anos, se o máximo da pena é igual a 1 (um) ano, ou sendo superior, não excede a dois;

VI – em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano. (Redaçao dada pela Lei nº 12.234, de 2010)

Exemplificando: para o crime de injúria (art. 140), punido no máximo com seis meses de detenção, o prazo da prescrição será de 3 (três) anos; para o crime de calúnia (art. 138), punido com a pena máxima de dois anos, a prescrição vai ocorrer ao final do transcurso de quatro anos; em oito anos prescreverá a pretensão punitiva do crime de furto simples (art. 155, caput), porque o limite máximo da pena é de quatro anos; etc.

Essa norma desvaneceu o combate à criminalidade e inibiu a prevenção geral, pois, ao tardar a reprimenda penal, o Estado faz da persecução criminal um instituto incompatível com o princípio da duração razoável do processo, com ofensa à segurança jurídica.

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SEUS REFLEXOS

É salutar apontar algumas considerações sobre os direitos fundamentais que lastreia a inconstitucionalidade da lei em comento, bem como indicar os referenciais teóricos.

O princípio da dignidade da pessoa humana é um princípio construído pela história. É a consagração de vetor axiológico que busca a incolumidade do ser humano diante de forças que lhe possam reificar.

Por ser uma construção histórica, o princípio da dignidade da pessoa humana foi remodelado durante séculos, até a sua feição atual.

O liame histórico e filosófico dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana demonstra que esses direitos são dimensões da própria condição humana, constituindo pontos centrais do Estado Democrático de Direito. 

Para Bonavides, 2000, pag. 113, a universalidade se manifestou pela vez primeira, com a descoberta do racionalismo francês da Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos Direitos do Homem de 1789)”.

Segundo Maliska, 2001, pág, 27, a fase anterior aos acontecimentos do final do século XVIII é representada, no âmbito dos direitos fundamentais, pelas cartas e declarações inglesas. 

A partir da Declaração francesa, notou-se que esta tinha um grau de abrangência muito mais significativo do que as declarações inglesas e americanas, posto que, conforme Bonavides, 2000, pág. 117:

… se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração Francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. 

A universalidade da proteção das liberdades pública da pessoa humana tem na Declaração Francesa sua fonte primeva.

Silva, 1999, pag. 62, aduz: 

…dessa corrente da filosofia humanitária cujo objetivo era a liberação do homem esmagado pelas regras caducas do absolutismo e do regime feudal. 

A partir desse momento histórico, os direitos fundamentais do homem, em especial a liberdade, ganharam robustez e legitimidade, irradiando-se esse novo vetor trazido pela Declaração Francesa nas constituições ocidentais.

O teor de universalidade da Declaração Francesa de 1789, como bem escreve Boutmy por Bonavides, 2000, pág. 33, citado: 

Foi para ensinar o mundo que os franceses escreveram…

Nesse contexto, surgem os direitos fundamentais de primeira geração, que após todo período revolucionário do século XVIII, principalmente pelas ideologias políticas francesas, marcado pelo teor individualista (direitos de defesa, direitos do indivíduo frente ao Estado), externou-se os caracteres base de todo escopo essencial dos direitos fundamentais. 

Consoante Bonavides, 2000, pág. 45, os direitos fundamentais de primeira geração:

São os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente. 

Desta forma, os direitos fundamentais de primeira geração estão presentes em todas as Constituições das sociedades civis democráticas, não obstante seu caráter de status negativus (representam uma atividade negativa por parte da autoridade estatal, de não violação da esfera individual). 

Percebe-se que, a partir desse novo contexto normativo, a ampliação da zona de defesa do indivíduo frente à atuação do Estado, e a proibição da prisão por dívida como um direito fundamental impõe ao Estado uma vedação legislativa.

Diante disto, é forçoso mencionar Clève, 1996, pág. 170, que diante do regime jurídico destes direitos, descreve algumas notas caracterizadoras, a saber:

1. Aplicabilidade direta das normas que reconhecem, consagram ou garantem (art. 5º, d 1º); 2. Vinculatividade das entidades públicas e privadas (Preâmbulo); 3. Reserva de lei do Congresso (impossibilidade de lei delegada, medida provisória) para sua restrição (art. 68, d 1º, II ); 4. Princípio da proporcionalidade como princípio informador da atividade legislativa, inclusive das leis restritivas a direitos e garantias (art. 5º, LIV); 5. Princípio da salvaguarda do núcleo essencial (princípio implícito decorrente do Estado de Direito); 6. Limitação da possibilidade de suspensão nos casos de estado de sítio e estado de defesa (arts. 136, d 1º, I e 139); 7. Garantia contra o poder de emenda a Constituição (limite material ao poder de reforma constitucional) restritiva do conteúdo dos direitos individuais (art. 60, d 4º, IV). 

Emergindo dos próprios ditames constitucionais, o regime dos direitos fundamentais não pode sofrer qualquer tipo de “amesquinhamento” por qualquer atitude estatal. 

No caso em exame, esse vetor-princípio proíbe a criação de causa de imprescritibilidade de crime, exceto nos casos previstos pela Constituição.

AS hipóteses de IMPRESCRITIBILIDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição Federal de 1988 prevê duas hipóteses de imprescritibilidade penal em seu art. 5°: a prática de racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (inciso XLIV), os quais serão tratados por espécie.

DA PRÁTICA DE RACISMO

Conforme afirma Silva, pag. 102,1999, racismo é a forma agravada de discriminação que importa a ideia de domínio de uma raça sobre outra.

O racismo se fundamenta no pressuposto de que existem raças superiores e inferiores e, em razão dessa hierarquia genética, estas não podem ter os mesmos direitos daquelas. 

O racismo não se trata de teoria, se o fosse a Constituição Federal não a incriminaria em nome da liberdade de pensamento e de convicção filosófica.

Na verdade, o racismo é ideologia discriminatória e perniciosa, sem lastro científico.

A Constituição Federal repele às práticas decorrente dessa pseudoteoria. Nesse norte, em seu art. 5º, XLII, consagra exceção à regra geral da prescritibilidade dos crimes:

“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

O repúdio ao racismo nas relações internacionais está expressamente previsto no art. 4º, VIII, da Constituição Federal.

Desse modo, vê-se esta exceção à regra geral da prescritibilidade dos crimes se justifica em razão de o racismo não só atentar contra valores fundamentais do indivíduo, mas contra toda a humanidade, uma vez que práticas como a do Apartheid são repelidas no mundo inteiro.

DA AÇÃO DE GRUPOS ARMADOS CONTRA A ORDEM CONSTITUCIONAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Preconiza a Constituição Federal, em seu art. 5º, XLIV, textualmente:

Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. 

O texto traduz uma forma de defesa da própria Constituição Federal e do Estado Democrático que ela instituiu.

Ressalta-se que Carta Magna não prevê expressamente qual o crime que receberá os gravames estipulados nesse inciso.

Então, cabe à lei ordinária a definição desse crime, com a fixação da sanção correspondente, sob pena de violar o princípio da legalidade, previsto no art. 5º, XXXIX).

No presente caso, a matéria foi regulada pela Lei n. 7.170/83, de 14 de dezembro de 1983, que é a chamada Lei de Segurança Nacional.

Assim sendo, a principal função desse dispositivo está na vedação de benefícios aos integrantes desses grupos em razão dos bens juridicamente tutelados: a Constituição Federal e a Ordem Democrática.

Assim, é coerente externar que a prescrição de crimes tem limites na própria Constituição Federal. 

O legislador infraconstitucional não pode violar a Constituição Federal e tipificar condutas subvertendo inclusive a natureza dos conceitos. Uma medida deste naipe representaria inequívoco expediente desviante da função legislativa e agressora da Constituição, pois criar novas hipóteses de imprescritibilidade configura ofensa aos limites Constitucionais.

Veja-se a necessidade de apresentar explicitação de Clève, 2000, pág. 92,  quanto à matéria em debate:

Na interpretação enunciativa, o intérprete limita-se a enunciar uma nova regra que necessariamente deriva da anterior. Um exemplo de interpretação enunciativa é aquela formulada com o apoio no ‘argumentum a minori ad maius’- a lei que proíbe o menos proíbe o mais. Então, a lei que proíbe a prisão civil, implicitamente também proíbe o mais, ou seja, a prisão criminal. (14)

Os direitos fundamentais não podem ter seu núcleo essencial anulado, tendo em vista sua relevância jurídica no Estado Democrático de Direito.

Portanto, o Poder Legislativo não pode abusar de competência para regular um direito fundamental, pois se o legislador ordinário intencionar editar qualquer lei que infrinja o dispositivo do art. 5º, XLII e XLVI, configurar-se-á ato normativo eivado de inconstitucionalidade. 

Assim, manifesta-se Clève, 2000, pág. 110:

É verdade que o Estado está autorizado a conformar os direitos fundamentais, podendo, inclusive, restringi-los. Mas estas atividades encontram limites. Revele-se, nesta oportunidade, que não são os direitos fundamentais que devem ser aplicados nos termos da lei, mas sim a lei que deve ser aplicada nos termos dos direitos fundamentais. (16)

Infere-se, portanto, que a vedação de criação de novos crimes imprescritíveis configura-se como direito fundamental que não pode ser violado pelo Poder Executivo ou Legislativo, haja vista que, na Constituição Federal da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana é norma constitucional de primeira grandeza.

A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 12.234/2010

Vê-se que a Lei n. 12.234/2010 nasceu e, em dissonância com a Constituição Federal, aboliu, quase por inteiro, a denominada prescrição retroativa.

A prescrição retroativa é modalidade de prescrição da pretensão punitiva que registra a contagem de prazos anteriores à sentença penal com trânsito em julgado para a acusação, sendo regulada pela pena concretamente fixada.

A novel lei, de 5 de maio de 2010, além de revogar o parágrafo segundo do artigo 110 do Código Penal, deu nova redação ao parágrafo primeiro. 

Na senda dessa nova legislação, o referido parágrafo primeiro passou a ter a seguinte disposição: 

A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa.

Portanto, não existe mais a contagem do prazo prescricional dentro do marco temporal entre os termos da data do fato e o do recebimento da denúncia ou queixa. 

Ressalta-se que essa lei não pode atingir relações jurídicas penais pretéritas, em razão da vedação da retroatividade da lei penal mais benéfica (artigos 5º, inciso XL, da Constituição Federal).

A prescrição, por refletir diretamente sobre o estado de dignidade da pessoa humana, é direito fundamental do cidadão e integra o rol das denominadas Cláusulas Pétreas.

Nesse contexto, é forçoso aduzir que nem o Poder Constituinte Derivado poderá deliberar sobre proposta de emenda constitucional tendente a abolir o direito público subjetivo à prescrição, em razão do art. 60, parágrafo quarto, inciso IV, da Constituição da República Federativa do Brasil.

Contudo, independentemente da gravidade em tese do crime, não pode haver exceções à regra da prescritibilidade de todos dos crimes, salvo os casos expressamente ressalvados na Constituição, crime da prática do racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Nota-se que a Carta Magna, ao criar hipóteses de crimes imprescritíveis, declarou implicitamente a prescritibilidade dos crimes como direito fundamental do cidadão.

Contudo, o legislador não observou a proibição contida na Constituição Federal e editou a Lei n. 12.234, de 5 de maio de 2010, que alterou os artigos 109 e 110, do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

Assim sendo e com base das vedações constitucionais, é coerente inferir que é defeso ao legislador ordinário elaborar norma que elimine a figura da imprescritibilidade dos crimes, mesmo que indiretamente.

Ante o exposto, a Lei n. 12.234, de 5 de maio de 2010, ao vedar a possibilidade de reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva retroativa em termo anterior ao do recebimento da denúncia ou queixa, violou princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica, motivo pelo qual  merece afastamento do mundo jurídico.

No presente caso, a matéria foi regulada pela Lei n. 7.170/83, de 14 de dezembro de 1983, que é a chamada Lei de Segurança Nacional.

Assim sendo, a principal função desse dispositivo está na vedação de benefícios aos integrantes desses grupos em razão dos bens juridicamente tutelados: a Constituição Federal e a Ordem Democrática.

O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal é, constitucionalmente, o órgão jurisdicional máximo do sistema jurídico do Brasil, composto de 11 (onze) magistrados.

Em razão de sua superposição em relação aos outros Tribunais, o art. 102 da Constituição Federal preconiza que ao STF compete, precipuamente, a guarda da Constituição, realizando o controle difuso e concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos em geral.

No controle concentrado, portanto, o STF é legitimado para guardar a Constituição Federal. De mencionar que esse controle é feito por via de ação principal ou abstrata, com a finalidade de declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei em tese (objeto da ação). De outra senda, a Constituição de forma expressa apontou os legitimados para o seu ajuizamento (art. 103). 

À Corte Suprema também pode exercer o controle difuso de constitucionalidade, por via de exceção, incidental ou concreto. Nesse caso, a declaração de (in)constitucionalidade não é o objeto principal da lide, mas questão incidental surgida no caso em tela.

O Supremo Tribunal Federal adota o posicionamento pacífico de que o Poder Constituinte Derivado não pode abolir ou tentar abolir direito fundamental do cidadão.

Nesse contexto, a Corte Suprema tem decidido sobre a inconstitucionalidade de proposta de emenda ou lei ordinária tendente a abolir cláusula pétrea:

A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de “originário”) não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas. (STF – Tribunal Pleno, ADI 2356 MC /DF – p/ Acórdão:  Min. Ayres Britto, j. 25.11.2010, DJ 19.05.2011)

Proposta de emenda à CF – Instituição da pena de morte mediante prévia consulta plebiscitária – Limitação material explícita do poder reformador do Congresso Nacional. Inexistência de controle preventivo abstrato (em tese) no direito brasileiro (ADI 466, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 3-4-1991, Plenário, DJ de 10-5-1991).

Portanto, não se tem dúvida diante dos precedentes do Supremo Tribunal Federal de que eventual afronta à cláusula pétrea pelo Poder Constituinte Derivado ou pelo legislador ordinário é fundamento para manejo de ação direta de inconstitucionalidade.

Diante do exposto, não há guarida no sistema jurídico do Brasil para a criação de causa de imprescritibilidade em razão do princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista que a Constituição prevê expressamente as duas únicas condutas típicas imprescritíveis (art. 5º, XLII e XLIV).

Nesse diapasão, a dignidade da pessoa humana, direito fundamental do cidadão em face do Estado, valorizado na clássica Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, configurando-se direito de primeira geração, não pode se desprestigiado sob o argumento de supostamente proibir a impunidade.

Ressalta-se que se mostrou que a lei em questão merece expurgo do ordenamento jurídico pátrio, em razão da desproporcionalidade dos bens tutelados.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu art. 5 º, § 2 º, que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes de regime e dos princípios por ela adotados, motivo pelo qual o direito a prescritibilidade faz parte do rol dos direitos fundamentais, salvo nas hipóteses previstas na própria Constituição.

Além do mais, com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, que incluiu o § 3º ao art. 5º, os tratados internacionais sobre direitos humanos passaram a ter natureza sui generis, ou seja, normas supralegais, e, no caso de aprovação pelo quórum qualificado, passam a ser normas constitucionais. 

De outro lado, menciona-se que, ao aderir ao Pacto de São José da Costa Rica, o sistema jurídico do Brasil implantou mais uma limitação para o seu poder, não podendo violar norma que fez incorporar ao seu ordenamento jurídico.

Nesse painel, o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), promulgado por meio do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, tornou definitiva a dimensão do direito segundo a qual toda atividade estatal que vise privar a liberdade deve ser tratar com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.

A perseguição criminal não pode, com o intuito de combater a impunidade delitiva, violar as franquias constitucionais do cidadão. O sacrifício de garantia constitucional para satisfazer o direito penal de ocasião ou o Movimento da Lei e da Ordem é medida incompatível com o atual status  da Democracia brasileira e merece toda a repulsa da sociedade e, pelos meios legais, a declaração de sua incompatibilidade com a Ordem Constitucional vigente.

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