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O silêncio da luz

Desde o início da manhã, quando passou o velório da moça, até o final daquela tarde, que os bichos, pelos quintais e terreiros,..

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Publicado: 18/07/2014 às 18h11min | Atualizado 28/04/2015 às 17h34min

Desde o início da manhã, quando passou o velório da moça, até o final daquela tarde, que os bichos, pelos quintais e terreiros, lambiam-se. E as pessoas, como naquela comitiva fúnebre, ainda caminhavam lentamente, quase sem expressões faciais. Não era tristeza, não era nada. Apenas o teor bucólico que deixa frio o aspecto do mundo quando as perdas são confirmadas. Alguns familiares demoram mais tempo que outros para se recuperarem das notícias de mortes de seus parentes. Espalham-se por todos os lugares absorvendo um silêncio interminável e denso. Estão mesmo embaixo das copas das grandes árvores riscando o chão com um graveto de pau. Por outras vezes, jogando pequenas pedrinhas nas águas do rio e imaginando a configuração do vazio que se estende pelas feições do nada. E aquelas nuvens que passam sempre rápidas no céu, nesses momentos, esfarelam-se tornando a visão acidulante e fragmentária, com sugestão para um holocausto. Há pessoas caminhando, sem rumo certo, que não concebem a durabilidade de uma manhã inteira. E ficam até o início da noite perambulando à procura de algo que nunca mais virá. Como os namorados que perdem suas namoradas. Como os passarinhos depois de perderem seus filhotes. Como os próprios filhotes que, após gritarem tanto à procura de seus pais, se amotinam em pequenas grutas à espera do fim. Como o próprio fim quando não quer chegar e, embebido de sua terrível frustração, reinicia o novo ciclo da vida.

O moço jovem, aparentando lá seus vinte e poucos anos, caminhou muito, por muito tempo, até chegar ao cemitério. A princípio, não quis entrar. Mas, depois de demorar-se alguns minutos encostado à uma armação de madeira, resolveu dar alguns passos macios por sobre o chão do campo santo. Olhava todas as cruzes como que embriagado pelo fulgor daqueles signos místicos de tão grande peso. Sentia um certo convite lhe permitindo segurar a mão daquela sugestão de memória. E passava as mãos sobre as pontas das cruzes, quase que as acariciando, para deixar-se ainda mais quebrantado. Enquanto isso, sua mente incitada tomava volumosos goles daquela água estimulante. Dois, ou três, jazigos, com suas lápides quebradas, fizeram fluir ainda mais sua memória viciosa. Agora, pulsante na coloração daquele cenário, não era mais que um corpo absorvido pelo mistério que deixa a vida parecer-se com a própria morte. Como a própria morte que, matando, vai permitindo a renovação da vida. E ficou a olhar, incansável, para a profundidade que era a imagem daqueles túmulos entreabertos e possuidores de um vazio imensurável.
O moço, depois de algum tempo, deu continuidade à sua caminhada por entre as covas. Levantando um pouco mais o seu olhar, encontrou a distância adequada para a sustentação de seu arquétipo enigmático. Juntando, na linha reta de sua vista, as cruzes de alguns túmulos, concebia a flutuação de um lenço voluptuoso. Em seguida, pode também ver que uma penumbra levemente se movia em volta de um arbusto florido. Aos poucos, aquela névoa ganhava silhuetas na contraluz de uma fresta que arremetia o brilho prateado da lua. Os traços imprecisos, ganhavam cada vez mais definição, até que poderiam ser notados na performance de uma linda moça mergulhada em seu encantamento profundo. Ela trazia na face um sorriso doce e tinha uma aparência de delírio amável. Alucinado, e na tentativa de alcançá-la, aquele moço apressou muito o seu passo e fragmentou demais a sensação. Por isso a silhueta formada pela luz foi perdendo a definição. E quando ele chegou bem perto, já não havia aquele lenço e a névoa tomara conta de tudo. À sua volta, naquela noite de lua clara, apenas os túmulos e as pontas das cruzes tinha lá sua aparência real. Objetivados no plano condicional da matéria, formavam aquela cena incondicional instigada na enigmática presença daquele tão frio cemitério.



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