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O vento

As pessoas, em volta da comunidade de São Sebastião, ficam muito assustadas quando é noite de lua cheia. As mulheres, que em outras..

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Publicado: 20/07/2014 às 18h32min | Atualizado 27/04/2015 às 11h35min

As pessoas, em volta da comunidade de São Sebastião, ficam muito assustadas quando é noite de lua cheia. As mulheres, que em outras noites descem para apanhar água na beira do rio, nesses períodos não se afastam muito de suas casas. Fazem todo o serviço nos dias anteriores, prevenindo contra qualquer possível má sorte. As crianças também são proibidas de saírem de perto de suas moradias. Também se não fossem proibidas, não o fariam. Isso, porque os adultos insistem na contação dessas histórias que aterrorizam, princialmente os mais jovens. Alguns idosos, que não tem causos para contar, muito menos contos da mística que envolve o lugarejo, ficam alheios às histórias que percorrem de um lado para o outro, como se fosse uma correnteza tocando a rítmica na força do rio e arrastando os gravetos e folhas secas que caem da floresta. Mas, os idosos contadores de histórias, esses fazem gosto a tudo o que diz respeito à comunidade. Se entram pelas histórias que estão sendo contadas por uns, e por outros. Sabem o jeito mais maleável de insinuar uma pitada a mais de sal nessa comida típica que é servida para matar a fome da curiosidade. Falam, com detalhes, das acontecimentos que mais têm consistência e credibilidade junto aos moradores da vila. Na comunidade de São Sebastião, as pessoas não chegam a se assustar, de fato, com as noites de lua cheia. Tem muito mais medo é das histórias que os contadores diligenciam.

A roda foi fechada e nela aportavam pelo menos dez crianças e cinco adultos. Também duas senhoras, de idade bem avançada, estavam às margens. O contador de histórias deixou todos aqueles ouvintes ali e foi pegar um copo d’água. Mas, se demorou e alguém resolveu procurá-lo. O próximo também não retornou e, até que a roda fosse desfeita, saindo dela o último, já se passavam cerca de dez minutos. As duas senhoras, indiferentes àquela empreitada de narrativas, se alongavam em suas lembranças dos tempos de criança. Suas vozes, ásperas, eram parte daquele formato assombroso que forçava o tom para além do rude, enfeiando a realidade para não mitigar a originalidade. As crianças, aos poucos, foram se aproximando daquelas senhoras e, em pouco tempo, também os adultos já estavam em volta. E foi assim que o entardecer engoliu o final do dia e a noite banhou todo o lugarejo com uma ausência de luz muito abundante. Havia algumas estrelas no céu e a enorme lua avançando sobre a copa do mundo daquele espaço no meio da floresta. O reflexo daquela luz, nas águas do rio, grande e descomunal, assustava. E enquanto isso, as contadoras de histórias avançavam naquelas narrativas sem fim. Até que houve um silêncio e todos se ausentaram para tentar compreendê-lo. Chegava, da mata fechada ao redor das casas, um vento rasgante que fazia arder as narinas das crianças. Os homens também se incomodaram com aquele sintoma de falta e presença do desconhecido. Um ou outro, em resmungo, deixava escapar que era apenas a mudança natural da direção da ventania, tão natural naquela época do ano. Mas, talvez por aquela se demorar tempo demais, além do previsível, todos se assustavam. Fato é que, aos poucos, aumentava aquela força que conseguia dobrar os ramos mais finos dos pequenos arvoredos. Até que um galho ainda mais forte rompeu e, ao cair, cobriu as crianças que estavam amotinadas por detrás das velhas senhoras. Então, os homens correram para acudi-las. Ao, descobri-las, perceberam a ausência de uma destas. Assim, precisaram vasculhar todo o local.

O vento já não soprava e a criança ainda não tinha aparecido. Foi então que resolveram adentrar um pouco mais na mata virgem. E foi aí que avistaram a criança, imóvel, no centro de um cemitério descoberto naquele instante. E todos se assustaram com aquila novidade. A lua estava bem clara e havia algumas estrelas no céu. As mulheres já haviam se recolhido e os homens retornavam para suas casas trazendo as crianças que estavam assustadas. Amanhã, talvez, eles retornem para as suas contações de histórias. Mas, talvez a lua não colabore muito.



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