Porto Velho/RO, 19 Março 2024 09:48:30
VARIEDADES

“Transexual nunca foi ser humano no Brasil”, diz trans

Com paralisia desde a infância, Anita Silvia foi abusada sexualmente ao longo da vida e hoje enfrenta o preconceito por meio do teatro

Por Estadão Conteúdo
A- A+

Publicado: 11/11/2018 às 22h13min

“A ferida cicatrizou, mas ainda dói. Sempre sangra um pouco”. Foi assim que a transexual Anita Silvia, 31, definiu sua família, que a rejeitou quando ela tinha apenas 12 anos, após dizer que se identificava como uma menina quando ainda estava num corpo de menino.

Carioca de origem pobre e caçula em meio a 20 irmãos, Anita sofre de paralisia desde a infância e, já com as partes do corpo debilitadas, foi estuprada pelo vizinho dos quatro aos seis anos. O rapaz fazia isso ameaçando a criança de contar para os familiares dela o gênero e a sexualidade que ela revelava desde cedo.

Anita performa em coletivo artistico que fundou. Para ela, a arte é uma forma de libertar e conscientizar as pessoas.
Foto: Facebook / @ColetivoMEXA / Estadão Conteúdo

“Foi uma violência física e psicológica e nada tem a ver com o fato de eu ser trans. Sou desse jeito desde pequena”, conta. “Eu falei para a minha mãe a situação e levei uma surra, porque ela achou que eu estivesse mentindo. Preferi ficar calada a partir daí, com medo”, recorda.

Agindo assim, Anita foi agredida em silêncio durante a vida toda. Quando confessou sua orientação de gênero, ela esperava acolhimento, mas recebeu um tapa no rosto e uma expulsão de casa como resposta da dona Josefa, sua mãe já morta.

O abandono precoce foi o prenúncio do que estava por vir de pior em sua vida. Sem dinheiro, falta de aconselhamento nos estudos e sozinha, ela foi aliciada por uma cafetina no Rio de Janeiro aos 12 anos, conheceu as drogas e voltou a ser abusada sexualmente por adultos — desta vez em troca de dinheiro.

“Nesse mundo, muitos homens nos procuram não para fazer sexo, mas para usar crack, cheirar cocaína, beber e fumar maconha. Não importa a idade que você tem”, revela a mulher. “Passando necessidade e sem ajuda, a gente tem que aceitar. Ninguém se prostitui por prazer, mas por dificuldade na vida”, completa.

Anita estudou até a 4º série e não sabe ler nem escrever. Há oito anos, ela se mudou para São Paulo e hoje se sustenta com um salário mínimo da Previdência Social — devido à sua paralisia.

A mulher morou em abrigos masculinos na capital paulista, o que gerou atritos devido a sua identidade de gênero. “[Em 2015], um dos conviventes [do Complexo Prates, no Bom Retiro] e mais 22 pessoas queriam matar com uma faca minhas amigas e eu quando denunciamos a LGBTfobia que eles faziam ao gritar meu antigo nome de registro, que é Fabiano“, relata.

O filósofo e psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), Daniel Martins, explica que o histórico de violência que Anita passou não é necessariamente fruto do abandono familiar, já que pode ter sido gerado por decisões pessoais.

No entanto, ele afirma que há um elo entre agressão doméstica e vulnerabilidade social. “O desprezo dos parentes não é uma relação de causa e efeito, mas de associação”, diz. “Vínculos afetivos de amor na família são fatores de proteção e diminuem as chances das pessoas vivenciarem situações de violência, mas existem fatores externos. Não podemos julgar aquilo que não nos cabe”, esclarece.

Quando o arco-íris ganhou cor

Em 2016, após idas e vindas pelo mundo da prostituição e de ser agredida física e verbalmente em abrigos da capital paulista, Anita Silvia encontrou amparo na então recém-inaugurada Casa Florescer, um centro de acolhimento para transexuais.

O espaço, da Prefeitura de São Paulo, já acolheu 253 mulheres. Destas, 54 conseguiram conquistar total autonomia, com trabalho fixo e moradia, após usar o local como um suporte para recomeçar a vida. “Uma delas foi excluída da família, morou na rua, se drogava e se prostituía. Quando veio para a Casa, ela conseguiu melhorar a saúde, se capacitou profissionalmente e hoje está empregada e com casa”, diz o gerente da FlorescerAlberto Silva.

Com serviços de assistência social, atendimento psicológico e eventos culturais, o lar abriga 30 mulheres trans atualmente. No final de outubro deste ano, quatro delas conseguiram emprego, segundo o gestor. “Nosso objetivo é melhorar a qualidade de vida delas. Temos duas moradoras com deficiências e que são bem eficientes, pois possuem uma história de vida muito rica e que mesmo diante dos desafios, lutam diariamente [pelo direito de serem quem são]”, aponta ele.

Agora longe de albergues que desrespeitam sua identidade de gênero, Anita diz se sentir em casa e demonstra autoestima ao falar de si. “A sociedade tenta me descrever como uma coitada, mas ser negra, cadeirante, analfabeta e adicta não me faz sofrer mais ou menos que ninguém. Me sinto como qualquer outra mulher cis ou trans”, afirma.

‘Não tenho medo de virar estatística’

A violência que Anita encarou ao longo da vida é um espelho da realidade nacional: o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, com 868 pessoas assassinadas entre 2008 e 2016, segundo a ONG Transgender Europe. Apesar dos dados, a mulher afirma que não tem medo de morrer e entrar para a estatística.

“Meu único temor é não poder ajudar a combater a transfobia”, diz ela, que fundou o Mexa, grupo LGBT que se manifesta contra o preconceito por meio de apresentações teatrais. A ideia veio da paixão de Anita pelos palcos, cultivada desde a adolescência.

“A gente escolheu a forma cênica, o humor e o drama para cutucar a sociedade. Só ficar falando é chato, então explicamos a transfobia de uma forma que as pessoas consigam entender”, afirma no site do coletivo. “Transexual nunca foi ser humano no Brasil, somos apenas números, mas a esperança é a última que morre”, completa.

O psiquiatra e coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, Alexandre Saadeh, explica que o Brasil tem uma dívida histórica com os transexuais desde o período da ditadura militar. “Era uma população que não existia, especialmente a adulta, e que não podia operar por impedimento da Justiça”, afirma.

A proibição ficou marcada na época pela prisão do médico Roberto Farina, que realizou a primeira cirurgia de mudança de sexo do País em 1971. Cinco anos após o procedimento, o Ministério Público de São Paulo descobriu o caso, denunciou Farina por lesão corporal gravíssima e considerou Waldirene vítima — mesmo tendo sido operada por vontade própria.

O preconceito era justificado pelo artigo 129 do Código Penal, que dá pena de três meses a doze anos por violência contra a integridade física. No entanto, em 1997, o Conselho Federal de Medicina conseguiu aprovar a resolução nº 1.482, em que afirma que a mudança de sexo não constitui mais crime.

“Tivemos um avanço de lá para cá, mas o Brasil ainda é uma colcha de retalhos. Em São Paulo, há iniciativas interessantes para a população transexual, mas é muito difícil a montagem de ambulatórios no resto do País. Quase não existe o interesse público ou a possibilidade de trabalhar com essas pessoas”, analisa Saadeh.

A mudança de paradigmas e o aumento das oportunidades faz Anita se sentir otimista com o futuro. Ela pretende operar as genitálias para ficar, fisicamente, do jeito que sempre sonhou. “Eu cansei de entregar minha vida aos outros. Quero ter uma vagina por mim e para mim. Ela não vai ser de ninguém”, assegura.



Deixe o seu comentário